O rio dos Bugres, que fica entre as cidades de Santos e São Vicente, no litoral de São Paulo, foi classificado como o segundo mais contaminado por microplásticos no planeta.
A conclusão está em um estudo publicado recentemente na revista científica Marine Pollution Bulletin por pesquisadores do Ipen (Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares) e do Instituto Ecofaxina, ONG que realiza atividades de limpeza e educação ambiental na região.
Planeta em Transe
Uma newsletter com o que você precisa saber sobre mudanças climáticas
Um dos pontos do rio apresentou uma concentração de mais de 93 mil partículas de microplástico por quilograma de sedimento coletado (areia ou lama do fundo da água).
Outros dois pontos do mesmo rio tiveram concentrações de mais de 62 mil e 43 mil partículas por quilo de amostra.
Em uma comparação com outros cem corpos d’água que têm dados de microplásticos disponíveis em pesquisas, o rio dos Bugres perde apenas para o rio Pasur, em Bangladesh (157 mil partículas por quilograma de sedimento).
No entanto, o artigo que divulgou os dados do rio Pasur, publicado em 2023 na revista Science of The Total Environment, foi removido pela editora científica Elsevier na última quinta-feira (13) após uma investigação constatar que um dos autores, o pesquisador brasileiro Guilherme Malafaia, enviou uma revisão falsa do trabalho. A Elsevier diz que não há mais confiança na integridade da pesquisa. Malafaia já teve mais de 30 artigos retratados (ou seja, “despublicados”) pela editora.
Os pesquisadores do estudo feito na Baixada Santista, porém, consideram que o dado pode ser válido até o momento por não haver acusação de manipulação dos resultados apresentados e pelo artigo ter sido revisado por outros cientistas.
O rio dos Bugres faz parte do sistema estuarino de Santos e São Vicente, área de transição entre a água doce do continente e a salgada do mar.
A margem santista é ocupada pelo Dique da Vila Gilda, considerada a maior favela de palafitas do país. As moradias são irregulares, construídas sobre o mangue. Estimativas apontam que cerca de 20 mil pessoas vivem na área. Do lado de São Vicente, a margem também é ocupada irregularmente.
“O rio tem ocupações irregulares por toda a sua margem, desde o início até a desembocadura no largo da Pompeba. Nas duas margens, esgoto e resíduos são descartados no rio”, diz William Rodriguez Schepis, diretor-presidente do Instituto EcoFaxina e um dos pesquisadores do estudo.
Schepis explica que o plástico se acumula na área devido à baixa circulação de água característica do rio. “O plástico está presente o tempo todo, preso, principalmente sob as palafitas e nas raízes de mangue. O sedimento já está muito contaminado por anos de descarte irregular”, diz.
A Folha percorreu o rio de barco em 7 de fevereiro. O mau cheiro causa o maior impacto sensorial no início, mas os outros problemas logo ficam visíveis. Há uma grande quantidade de lixo flutuando próximo das palafitas, como embalagens plásticas e roupas. Um rato morto boiava perto de onde crianças nadavam sob um calor de mais de 30°C.
A reportagem presenciou um caminhão fazendo descarte irregular de entulho de construção civil na margem do rio no lado de São Vicente. Pedaços de telhas, tijolos, madeira e embalagens de plástico foram lançados por volta das 15h.
O motor do barco parou pelo menos três vezes devido ao lixo acumulado na água. Na parte mais rasa do rio, a navegação precisou ser feita mais lentamente e com ajuda de um remo para evitar acidentes com pedaços de borracha, tecido e outros tipos de resíduos.
“O descarte de entulho acontece de forma desordenada, dia e noite. Isso acontece porque o poder público não toma iniciativa”, diz o autônomo da construção civil Sérgio de Castro Moreira, 58, que há mais de 40 anos vive na região.
Moreira diz, porém, que ainda é possível pescar espécies como robalo e parati. “Ainda tem vida no rio, mas ela está escassa.”
O plástico que chega ao rio dos Bugres tem diversas origens, mas Schepis aponta como um dos maiores problemas o descarte domiciliar local.
“As pessoas sabem que é errado descartar plástico no ambiente e que o lixo deveria ir para a lixeira, mas, como costumam dizer, ‘a maré é o lixeiro’. Jogam na maré, e, duas vezes por dia, a oscilação das águas carrega esse resíduo para outras áreas de mangue e para as praias ao redor”, diz.
Procuradas pela reportagem, as prefeituras de Santos e São Vicente afirmam que estão trabalhando para aumentar a fiscalização do descarte irregular de resíduos no local.
Os microplásticos são partículas com menos de 5 mm de tamanho, fruto da degradação do plástico, seja por radiação solar ou pelo atrito com a água e outros sedimentos, explica Duclerc Parra, pesquisadora do Ipen e uma das autoras do artigo.
Algumas atividades cotidianas, como lavar roupa sintética em máquina, também geram microplásticos, que vão para o esgoto e chegam aos rios e oceanos.
Essas partículas já estão presentes em alguns dos lugares mais remotos do planeta, como no Ártico e no monte Everest. No corpo humano, estudos já detectaram os microplásticos no sangue e em órgãos como pulmão e cérebro. Os plásticos são, em sua maioria, derivados do petróleo e podem levar até cerca de 500 anos para se decompor.
A vida marinha também recebe o contaminante. Peixes, golfinhos e camarões carregam as partículas em seus corpos. Um estudo publicado em 2023 procurou por microplásticos em ostras e mexilhões no estuário de Santos e colocou a região entre as mais contaminadas do planeta.
Moradores das margens do rio dos Bugres pescam e consomem peixes e outros animais que nadam no rio e podem conter os microplásticos. Os danos que essas partículas podem causar aos humanos e a outros animais ainda não são completamente conhecidos.
“Mas nós não metabolizamos o plástico, ele é incompatível com o nosso organismo. Então, algum dano vai existir”, avalia Parra.
“No organismo humano, essas substâncias se acumulam progressivamente, e podem causar doenças. Esses compostos podem afetar a produção hormonal e atuar como desreguladores endócrinos, provocando problemas hormonais. Além disso, podem gerar impactos neurológicos, circulatórios e outras complicações de saúde”, destaca.
A pesquisa analisou 10 pontos no sistema estuarino —6 deles ficaram entre os 10 locais com maior concentração de microplásticos no mundo, segundo o levantamento feito pelos cientistas.
Além do rio dos Bugres, os pontos de coleta na ilha do Barnabé, no rio São Jorge e no rio Casqueiro aparecem no topo da lista.
A Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo) diz que prepara um protocolo em parceria com a Unifesp para incorporar a medição de microplástico no monitoramento da qualidade da água que faz em 70 pontos do litoral paulista. Em 2025, a agência deve conduzir um piloto da medição das partículas em locais selecionados.
Um estudo publicado em 2023 na revista Marine Pollution Bulletin estimou o lixo plástico produzido no Brasil em 3,4 milhões de toneladas por ano. Um relatório publicado pela ONG Oceana em 2024 apontou que o país despeja 1,3 milhão de toneladas de lixo plástico no oceano por ano. Segundo o documento, o Brasil é o oitavo país que mais polui o planeta com plástico.
No planeta como um todo, segundo pesquisa publicada em 2024 na revista Nature com estimativa feita por inteligência artificial, 52,1 milhões de toneladas de lixo plástico são despejados no meio ambiente por ano.
Um Tratado Global de Combate à Poluição Plástica está sendo produzido, mas no último encontro, realizado no fim do ano passado em Busan, na Coreia do Sul, os mais de 170 países envolvidos nas negociações decidiram adiar a finalização do documento. Uma nova sessão deve ser realizada neste ano.
noticia por : UOL