Raio-X dos assassinatos em SP mostra alta de feminicídios, linchamento e sofrimento das famílias

Há três meses, a cozinheira Natalie Pereira da Cunha, 36, engole o choro todos os dias no caminho até o trabalho. Para chegar ao destino, precisa passar em frente ao Cemitério da Saudade em São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo, onde está enterrada sua filha, a estudante Ana Carolina Pereira de Santana.

A morte trouxe sequelas para a saúde de toda a família. O filho mais novo, de quatro anos, passou a se comportar de forma agressiva com os colegas na escola, e desaba a chorar quando a professora conversa a sós com ele. Antes de dormir, pergunta à mãe se Ana Carolina vai voltar.

Em fevereiro, a jovem de 18 anosfoi morta com 13 facadas pelo namorado, da mesma idade. O crime, que ele confessou ao se entregar no dia do enterro, foi uma reação à decisão dela de terminar o namoro.

Ela está entre as 132 vítimas de homicídios intencionais no primeiro trimestre deste ano na cidade de São Paulo. Na direção contrária do estado, a capital teve aumento de 8% nos assassinatos, dez casos a mais que no ano anterior.

Desde criança, o sonho de Ana Carolina era ser professora. Queria trabalhar em creches com crianças. Tinha acabado de ser aprovada num curso de pedagogia, e suas aulas começariam em março.

“É muito difícil porque a gente lutou muito para a minha filha chegar onde chegou, sabe? Para alguém vir e, sem mais nem menos, fazer isso com ela. Quando ela ia começar a vida”, diz a mãe. “O sonho dela, querendo ou não, esse assassino não tirou. Ele não tirou dela a alegria de conquistar o que conquistou.”

A zona leste, onde Ana Carolina morava, é a região com mais homicídios no primeiro trimestre na cidade: 44. Na sequência estão as zonas sul (40), norte (25), centro (18) e oeste (5).

Os dados da SSP (Secretaria de Segurança Pública de São Paulo) indicam que a maioria das vítimas é do sexo masculino, de cor parda e com idade mediana de 37 anos.

Mas chamam a atenção os 17 feminicídios, maior número da série histórica que teve início em abril de 2015, após a aprovação da lei que qualificou o assassinato contra mulheres por motivação de gênero.

Elaine Domenes de Castro, 53, foi assassinada pelo ex-namorado a passos de onde morava no bairro Campos Elíseos, no centro.

Os filhos dela contaram à polícia que estavam dentro de casa quando ouviram os disparos, e já a encontraram sem vida quando chegaram à calçada.

Segundo a investigação, Elaine havia relatado a uma amiga que sofria ameaças de morte de Rogério Benedito Gonçalves, 56, contra quem já tinha uma medida protetiva desde 2024 após denunciar agressões.

Identificado por meio de imagens de câmeras de segurança, Gonçalves fugiu do local após atirar. Ele se apresentou a uma delegacia no dia seguinte. Em 2011, já havia sido condenado pelo homicídio de outra mulher, em 2005. Também tem outras passagens pela polícia por agressão e receptação.

Rogério também disse, em depoimento, que comprou o revólver usado no crime em uma “feira do rolo” para defesa pessoal por conta de sua profissão como motorista de aplicativo.

Segundo o pesquisador sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Leonardo Carvalho, a facilitação no acesso a armas de fogo nos últimos anos ajuda a explicar o aumento de homicídios.

“Uma parte dessas armas, que são compradas legalmente, em algum momento vai para o mercado ilegal. Então, uma primeira hipótese é que maior aumento de armas, passando ali na fronteira da ilegalidade, acabando caindo nas mãos dos criminosos”, diz Carvalho.

Do total de homicídios no trimestre, arma de fogo foi o meio mais utilizado pelos assassinos (36%). Há 33 casos em que, embora a motivação inicial do assassino não tenha sido identificada, foram apontados indícios de execução.

Assim foi registrada a morte de Igor Donizete Abrile, de 17 anos, que estava em frente à sua casa no Parque Santo Antônio, na zona sul, quando dois homens em uma moto se aproximaram e atiraram contra ele. A dupla fugiu sem levar nada.

Sua mãe Ana Paula Abrile, 41, conta que Igor estava de folga e tinha ido buscar a irmã mais nova na escola. Quando voltou, comprou pão na padaria e sentou na porta de casa para conversar com um amigo. A família correu à janela quando ouviu os disparos, e o pai de Igor o colocou dentro carro para levar ao hospital, mas ele não sobreviveu.

“Só escutei o pessoal gritando: ‘foi o Igor’. Para mim tinha sido assalto, alguém querendo roubar o celular. Meu filho morreu por engano”, diz Ana Paula.

A família mudou da casa onde a lembrança do episódio estava tão presente. “O sonho do meu filho era ser jogador de futebol. Ele falava: ‘mãe, eu vou ser jogador de futebol, vou comprar uma casa para você. A gente vai mudar desse lugar’. E eu mudei, mas porque não aguentava olhar para onde aconteceu.”

Deivid Willian da Silva, 36, foi morto em um linchamento — foi esfaqueado em 20 de fevereiro na avenida do Estado, a menos de 150 metros do Mercado Municipal, no centro.

Ele fora apontado como o autor de um roubo de celular. Uma garçonete contou aos policiais que estava com o telefone na mão quando um homem o furtou e fugiu. Ela correu atrás do ladrão, que se virou para ela e ergueu a camiseta, exibindo o que parecia ser uma arma de fogo.

A garçonete recuou, mas outro grupo de pessoas foi atrás do assaltante e o esfaqueou. Junto a Silva foi encontrada uma arma de brinquedo.

Na estação de metrô Vila Matilde, uma briga levou a vida de Eduardo Rodrigues Machado, 20, atingido por um tiro. Ainda no interior do vagão, ele havia discutido com o PM aposentado Enéas José da Silva, 57. Uma câmera de segurança registrou o confronto entre os dois já fora do trem.

Em depoimento, o atirador afirmou que viu o rapaz empurrar uma senhora na plataforma e teria repreendido o ato, o que teria iniciado a discussão, que terminou em agressão física. O PM aposentado disse ainda que o disparo durante a briga teria sido acidental.

Procurada pela reportagem, a SSP afirmou que “acompanha de perto as variações dos indicadores criminais e mantém investimentos contínuos em tecnologia e inteligência para reduzi-los em São Paulo, principalmente os crimes contra a vida –prioridade da gestão.”

Sobre os feminicídios, disse que “implantou o movimento SP Por Todas para fortalecer a rede de proteção a mulheres no estado”. A secretaria afirmou que oferece “a maior rede de Delegacias de Defesa da Mulher do país”, com 141 unidades, 162 salas de defesa à mulher em plantões policiais e a Cabine Lilás, que dá atendimento especializado às vítimas 24 horas.

noticia por : UOL

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