Ministério e AGU acabam com 17 anos de transparência de despesas públicas

Já dissemos nesta coluna que a aplicação da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) na administração pública tem sido um desastre. Mas é preciso reforçar e ilustrar a gravidade da situação. O apagão promovido pelo Ministério da Gestão e Inovação, sob suposta orientação da AGU (Advocacia-Geral da União), marca um retrocesso histórico na política de transparência federal.

Desde a promulgação da Constituição de 1988, os brasileiros têm o direito de acessar o inteiro teor de contratos públicos e documentos que fundamentam os gastos do governo —seja em repartições públicas ou pela internet. No plano federal, esse direito antecede inclusive a LAI (Lei de Acesso à Informação), sancionada em 2011. O Siconv, sistema de convênios e contratos, existe desde 2008. Em 2022, o Executivo federal lançou o TransfereGov para consolidar e ampliar essa política, com acesso direto a documentos primários como notas fiscais, croquis, atas e laudos. O Brasil se tornou referência mundial no tema, superando países com IDH superior.

Entretanto, em 2024, o Ministério da Gestão retirou do ar mais de 16 milhões de documentos públicos, alegando que a medida era necessária para cumprir a LGPD e proteger dados pessoais. Em sua justificativa, o ministério disse ter seguido orientação da AGU. O próprio órgão, porém, afirmou ao jornal O Globo que o parecer não se aplica aos dados de convênios e que os documentos podem “continuar plenamente acessíveis, auditáveis e publicamente disponíveis”.

Em live na última sexta-feira (16), o ministério afirmou que existem dados de fiscais de contratos, atas de entidades privadas, entre outros. Nada disso é informação pessoal que possa ser restrita: conforme a própria ANPD, dados de entidades privadas e seus proprietários são públicos, motivo pelo qual o cadastro nacional de pessoas jurídicas os divulga na internet e qualquer um pode legalmente acessar num registro público. Mais uma vez, como escreveu nesta Folha o ministro Bruno Dantas, a má aplicação da LGPD ameaça a democracia brasileira.

A reação ao apagão de dados se intensificou nos últimos dias, com novas reportagens e o posicionamento de dezenas de entidades. Na segunda-feira, o Ministério Público acionou o TCU, pedindo a suspensão imediata da medida adotada pelo governo. Na mesma linha, considerando que o apagão inclui dados sobre emendas parlamentares, as organizações Contas Abertas, Transparência Brasil e Transparência Internacional – Brasil, que atuam como amici curiae (partes interessadas) na ADPF 854, solicitaram ao ministro do STF Flávio Dino que determine a imediata restauração do acesso público aos documentos.

Chega a ser cansativo repetir: não possui expectativa de privacidade quem recebe recursos públicos. É requisito e pressuposto para receber dinheiro público que seja possível à sociedade, e não apenas a burocratas, saber quem recebeu, como e para quê foi gasto. Tudo isso com acesso a informações primárias e detalhadas, direto na fonte.

O que está em jogo é muito mais do que acesso a PDFs. É o direito de fiscalizar o Estado.


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noticia por : UOL

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