— Tagliaferro! — grita Alexandre de Moraes tão alto que os outros ministros do STF ouvem. Em seu gabinete, Luiz Fux comenta com um capinha: — Xi, hoje o homem tá atacado.
Logo entra um assessor jovem, ainda com espinhas na cara. Deve ter acabado de sair da faculdade. Por baixo do terno comprado às pressas na Zara, ele usa uma camiseta na qual se lê “Eu <3 Democracia”.
— Licença, excelência. O doutor Tagliaferro não está, excelência.
— Onde foi que aquele inútil se meteu desta vez?
— Não, excelência. Sua excelência ameaçou prendê-lo depois que ele ficou de conversinha com aquele tal de Glenn. Lembra, excelência? Tem até inquérito aberto, excelência.
— Ah, é. É que é tanto inquérito que eu até me perco. — Alexandre de Moraes dá uma risadinha que o assessor não ousa retribuir. — Então você, seja lá qual for o seu nome. Mande a PF buscar este homem aqui — diz ele, entregando um mandado de busca e apreensão com o selo STF de autoridade inquestionável. — Já!
Qual?
Mas o menino é inexperiente e, por mais que os colegas tenham recomendado a ele que nunca, jamais, em hipótese alguma questionasse a ordem do “Imperador”, como Alexandre é carinhosamente chamado na sala dos assessores, ele não aguenta:
— O que ele fez, excelência? Atentou contra a democracia?
— Não interessa! Mas, se alguém perguntar…
— A Dani ou a Deia vão querer saber — disse o assessor, por algum motivo se sentindo mais à vontade.
— Verdade — concorda Moraes. — Se alguma dessas aí perguntar, diga que ele fez críticas às urnas eletrônicas e… e… e…
— Importunou baleia? Fraudou cartão de vacinação? Planejou um golpe de Estado num pacote de pão? Já sei! Viajou para os Estados Unidos para conspirar contra o STF, contra o senhor?
— Não, não e não. Diga que ele fez críticas às urnas, xingou um ministro do STF de gordo…
— Qual?
Dois milicos inúteis
Alexandre de Moraes não responde.
— …e que ele deu auxílio psicanalítico ao núcleo que idealizou o golpe. É, é isso.
— Ah, então o cara é psicanalista. Que interessante. Mas..
— Sem “mas”. Diga pro Andrei trazê-lo aqui, imediatamente.
— E se o doutor Andrei estiver ocupado, excelência?
— Aí pode mandar esses dois milicos inúteis que ficam aí na porta o dia inteiro.
O menino sai. Meia hora se passa. Batem à porta. Alexandre de Moraes manda entrar e dois brutamontes que não são nem da PF nem milicos trazem o dr. Sigismundo F. da Silva. Eles o jogam no chão como se fosse um saco de batatas. O homem treme.
— Excelência, eu sou inocente. O batom não era meu! Era de um amigo. Digo, uma amiga.
Estou tendo uns problemas e…
— Batom? — pergunta Alexandre.
— Ah, não foi por causa do batom? Achei que já tínhamos chegado ao ponto em que é proibido andar com batom por aí. Sabe como é. Atentado à democracia, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, essas coisas.
Paira um silêncio constrangedor no gabinete. Os brutamontes saem e o dr. Sigismuindo se levanta.
— Mas então por que é que o senhor me tirou do meio de uma sessão com o Huguinho? Logo agora que ele estava aprendendo a enfrentar seus medos, a se posicionar no mundo e a desafiar o STF. — E como se tivesse ali mesmo uma epifania: — Aaaaaaaaah!
—É sobre isso mesmo que eu quero falar com você.
— Sobre o Huguinho?
— Não! Você é o melhor psicanalista de Brasília, né?
— Sim, sou — disse o dr. Sigismundo, abrindo um sorrisão. —E também o mais modesto.
— Ótimo. Já temos algo em comum. Então. Eu pedi pra você vir até aqui porque…
— Pediu não… — corrigiu o doutor, se arrependendo imediatamente.
— É verdade. Eu mandei que você viesse até aqui porque estou tendo uns problemas e…
Prazer
— Problemas psicológicos?
— Problemas de todos os tipos. Jurídicos e políticos, sim. Até diplomáticos, acredita? Mas também psicológicos.
— Sobre os primeiros eu não posso ajudar. Mas quem sabe se o senhor desse uma lida naquela parte da Constituição que fala da independência entre os Poderes… Quanto aos psicológicos, estamos às ordens. Cobro 1500 por sessão.
— Dinheiro não é problema. Toma aqui o meu relógio.
— Hmmm. Patek Philippe. Já dá para conversarmos durante algumas horas. Mas o que é que aflige o senhor neste momento? Ataques de pânico? Complexo de inferioridade? Ah, não vá me dizer que é por causa da careca, Alexandre.
Um ri de nervoso e o outro ri porque sabe que pode prender o um por causa da piadinha infame.
— Não é nada disso — diz Alexandre de Moraes. — É o prazer. O que me incomoda é o prazer.
Melhor chamar de excelência mesmo
— De que prazer estamos falando? Do prazer de andar de jatinho da FAB pra cima e pra baixo, até pra ir ver o jogo do Corinthians? Do prazer de mandar inocentes para a cadeia? Do prazer de intimar o Bolsonaro na UTI? Do prazer de fechar o Congresso? Ou seria algo mais… sexual?
— Não, não. Nessa parte não tem problema. Pelo contrário. Mas este é um jornal de família e não vou entrar nesse assunto. O prazer de que falo é… este aqui, ó! — diz Alexandre de Moraes apontando para o psicanalista. Que não entende. — É você diante de mim.
— Não estou entendendo, excelência.
— Pode me chamar de Alexandre.
— Não estou entendendo, Alexandre.
— Melhor chamar de excelência mesmo.
— Não estou entendendo.
— É o prazer que eu sinto quando mando e me obedecem. E isso acontece sempre, o tempo todo. Eu mandei a PF te buscar e a PF te buscou. Eu mandei você me atender e você está me atendendo. E se eu te mandar imitar o Elvis, sabe o que você vai fazer?
It’s now or never
— It’s now or never/ Come hold me tight/ Kiss me, my darling/ Be mine tonight.
— Isso mesmo!
— Ah, então quer dizer que o senhor gosta de mandar. Sente prazer em mandar — disse o psicanalista.
— Ora, ora. Parece que temos um Sherlock aqui.
— Tá certo. Outra hora a gente fala sobre esse seu sarcasmo como mecanismo de defesa. E sobre os pontos de exclamação como compensação fá—
— Jornal de família, lembra?
— Verdade. Outra hora, quando ninguém estiver nos ouvindo, falaremos sobre essas coisas. Mas então quer dizer que o senhor gosta de mandar. Sente prazer em mandar. Olha, se o senhor não me falasse, nunca teria imaginado uma coisa dessas.
— É claro que eu gosto de mandar. É claro que sinto prazer em mandar. O problema é que… É que… — Alexandre de Moraes baixa a cabeça e a muito custo contém o choro.
— Aqui — diz o psicanalista, oferecendo um lenço sujo. Fazer o quê? Era o único que ele tinha!
Dever de ofício
— O problema é que esse prazer está me fazendo mal. Eu não posso sair de casa. No Muau Thai o pessoal tem medo de lutar comigo. Outro dia eu estava louco para comer no McDonald’s e fiquei com medo de que reconhecessem e cuspissem no meu Big Mac. Eu ando pensando até em usar peruca. Acredita?
— Acredito. Ah, se acredito. Mas, excelência, deixe-me perguntar… A sua mãe era muito mandona?
— Guardas! — grita Alexandre de Moraes. Os brutamontes entram. — Levem esse golpista daqui para a Papuda. Agora mesmo!
— Mas, mas, mas. Mas eu só estava cumprindo meu dever de ofício — tenta o terapeuta.
— Não quero saber! — grita Alexandre de Moraes. — Você falou na minha mãe e agora… — E faz aquele gesto de degola. Aquele que você, leitor, já deve ter visto em algum lugar.
— Tá bem, tá bem. Não vamos falar sobre a sua mãe — recua o dr. Sigismundo. —Vamos falar sobre… — Aí ele tem uma ideia que o faz pensar “nossa, como eu sou genial”. — Ah, que pena, excelência. Sua hora já acabou. Agora só na semana que vem.
Mas o diabo não é astuto sem motivo.
Um fraco
— Acabou a sessão? Não tem problema. Guardas, levem-no para a Papuda. Coloquem-no na solitária! Incomunicável até a semana que vem.
— Mas o que foi que eu fiz desta vez?! — pergunta o dr.
— Nada. Mas você quer que os meus colegas de toga e os bolsonaristas saibam que estou fazendo terapia? Imagine o vídeo que o Nikolas é capaz de fazer se essa informação se tornar pública! O que as pessoas vão pensar de mim?
— Que você é um fraco.
— Isso, que eu sou um fraco.
— Não foi uma pergunta. Foi uma afirmação. Você é um fraco e por isso sente prazer fazendo o que faz. Mas esse prazer é insaciável. E por isso você vai ter que mandar cada vez mais, prender cada vez mais, condenar cada vez mais, inventar mais e mais narrativas, passar cada vez mais por cima da Constituição…
— E tem cura, doutor? — pergunta Alexandre de Moraes, aparentando vulnerabilidade.
— Cura? Tem, sim. Mas…
— Ah, que ótimo. — E para os brutamontes: — Levem este homem daqui agora.
— Mas eu disse que tem cura, excelência! Eu posso te ajudar!
— Eu sei. Mas você também disse que a nossa sessão acabou. Além disso, de onde você tirou a ideia de que eu quero ser curado? Tão bom mandar e ser obedecido.
[CONTINUA]
noticia por : Gazeta do Povo