Cientistas correm para deter micróbios que poderiam ameaçar a vida na Terra

Cientistas lançaram uma campanha para impedir a criação de bactérias sintéticas que poderiam ameaçar a vida na Terra.

Em uma reunião em Paris, pesquisadores pediram uma ação internacional para evitar o surgimento da chamada vida espelhada —micróbios fabricados que eles temem que possam sobrecarregar as defesas imunológicas de humanos, de outros animais e de plantas.

A dimensão do perigo ainda é difícil de prever, mas poderia afetar “a preponderância da vida como a conhecemos hoje neste planeta”, disse David Relman, microbiologista e imunologista da Universidade Stanford, ao Financial Times.

“Existe um cenário em que um futuro organismo espelho se torna uma espécie invasora amplamente difundida e desloca e perturba muitos ecossistemas críticos em todo o planeta, incluindo o nosso”, afirmou ele. “Precisamos nos preocupar com a possibilidade de uma ameaça extrema, potencialmente existencial.”

O alerta destaca como a modificação de sistemas biológicos naturais usando técnicas como a edição genética transformou a saúde, mas também abriu caminho para novos perigos. Cientistas e governos tentam regulamentar essas tecnologias emergentes, incluindo o trabalho de “ganho de função” que aprimora patógenos.

A “vida espelho” é uma possibilidade por causa de um fenômeno natural conhecido como quiralidade, derivado da palavra grega para mão. Foi descoberto pelas observações do pioneiro da vacina do século 19 Louis Pasteur. O evento do último dia 13 foi realizado no Instituto Pasteur, fundado por ele.

Moléculas quirais têm uma única composição química, mas existem em duas formas estruturais que são imagens espelhadas uma da outra —exatamente como as mãos humanas.

Um par de estruturas quirais pode ser considerado como fechaduras de formas diferentes. Cada uma interage de maneira distinta com as chaves biológicas usadas pelos sistemas imunológicos dos organismos para lidar com partículas e patógenos que os invadem.

Se uma bactéria de ocorrência natural fosse substituída por sua gêmea espelhada, isso mudaria essas fechaduras e tornaria as chaves de resposta imunológica impotentes. Isso significa que um micróbio espelhado poderia se espalhar sem controle, obstruindo fatalmente os sistemas de suporte à vida dos organismos nos quais se infiltrar e não sendo afetado por muitos medicamentos existentes.





Unidades de biocontenção são vulneráveis a erro humano ou ao uso indevido deliberado. Uma única falha seria inaceitável devido ao risco sem precedentes representado por esses organismos

O escândalo do medicamento talidomida nas décadas de 1950 e 1960 é um exemplo do impacto que uma mudança na quiralidade pode ter no corpo humano.

Uma forma quiral da talidomida tinha o efeito pretendido de aliviar o enjoo matinal em mulheres grávidas. A outra causou graves defeitos congênitos, como danos cerebrais e deformidades nos membros.

Acredita-se que mais de 10 mil vítimas da talidomida nasceram em todo o mundo, com muitas morrendo muito jovens e outras nascendo mortas.

Micróbios espelhados surgiram como uma perspectiva mais séria à medida que pesquisadores criam formas quiralmente alteradas de moléculas biológicas naturais, como proteínas. Estas poderiam ser utilizadas como base para medicamentos de efeito mais duradouro, pois o sistema imunológico do corpo teria mais dificuldade em degradá-las.

Especialistas também dizem acreditar que organismos espelhados podem estar equipados para se alimentar de uma variedade mais ampla de fontes de alimento do que se pensava anteriormente, tornando-os mais capazes de se sustentarem.

Quase 40 cientistas, incluindo dois ganhadores do Prêmio Nobel, alertaram em dezembro que os perigos dos organismos espelho significam que nunca deveriam ser criados. Eles argumentaram que os potenciais ganhos, como a entrega mais eficiente de medicamentos, eram amplamente superados pelos riscos.

Com grandes investimentos e avanços técnicos, especialistas agora dizem acreditar que poderia ser possível criar micróbios espelho dentro de uma geração.

Bactérias manufaturadas podem ser viáveis dentro de 10 a 30 anos, segundo o especialista em biologia sintética John Glass, baseado na Califórnia para o Instituto J Craig Venter. Isso exigiria a convergência de múltiplos campos experimentais de fronteira, como a produção de biomoléculas espelho complexas e a fabricação de células vivas sintéticas a partir de componentes não vivos.

Mas ele alertou que a capacidade de conter organismos espelho, se fabricados, em laboratórios é um mito. “Unidades de biocontenção são vulneráveis a erro humano ou ao uso indevido deliberado. Uma única falha seria inaceitável devido ao risco sem precedentes representado por esses organismos”, afirmou.

Políticos têm destacado os perigos da biologia sintética. A revisão estratégica de defesa do Reino Unido, publicada neste mês, destacou “caminhos para danos enormes na forma de novos patógenos e outras armas de destruição em massa”.

Nos Estados Unidos, a chamada pesquisa de ganho de função, que investiga a ameaça de patógenos aumentando sua potência, tornou-se cada vez mais controversa. No mês passado, Donald Trump emitiu uma ordem executiva para restringir esse trabalho, aludindo a uma teoria —contestada entre cientista — de que a Covid-19 emergiu de pesquisas laboratoriais na China.

Cientistas que trabalham com os riscos da “vida espelhada” dizem que estão discutindo o tema com a ONU, outras organizações internacionais e governos nacionais. Um modelo são as Diretrizes de Biossegurança de Tianjin, elaboradas em 2021. Espera-se que o evento de Paris produza recomendações e deve ser seguido por encontros semelhantes no Reino Unido e em Singapura neste ano e no próximo.

A capacidade sem precedentes de manipular plantas, animais e micróbios deve ser tratada em nível global, na avaliação de Filippa Lentzos, professora associada em ciência e segurança internacional no King’s College London.

“Está claro que está se tornando cada vez mais urgente abordar a dimensão de segurança da biologia e das ciências da vida”, disse Lentzos, citando exemplos anteriores de ação, como a Convenção sobre Armas Biológicas de 1975. “A ciência responsável é mais importante mas também mais desafiadora do que nunca.”

Os micróbios espelhados podem não se revelar apocalípticos, segundo David Bikard, chefe de biologia sintética do Instituto Pasteur. A vida espelhada pode ter existido há muito tempo.

“Há um argumento de que no início da vida… ambos os lados do espelho existiam”, disse Bikard. “Um lado venceu, e o outro nunca se recuperou.”

Mas isso “não é motivo para tranquilidade”, alertou Bikard. “As incógnitas são grandes. E concordo que também existe um cenário onde isso é um evento catastrófico.”

noticia por : UOL

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