O serviço de carona em motocicletas por aplicativo, comum em milhares de cidades brasileiras, enfrenta nos tribunais do país uma disputa por interpretação de texto. Prefeituras que tentam proibir a modalidade encontram reação das principais empresas do setor, Uber e 99, que argumentam que não há respaldo legal para a proibição.
A disputa gira em torno do mesmo trecho da Política Nacional de Mobilidade Urbana, criada pela lei nº 12.587, de 2012. Em seu artigo 11-A, a lei diz que cabe exclusivamente aos municípios “regulamentar e fiscalizar” os serviços de transporte individual.
Uber e 99 dizem que o texto não dá ao poder municipal autorização para proibir o serviço. As prefeituras, que em vários casos proíbem os apps de moto por meio de leis ou decretos, argumentam que a lei lhes dá autonomia para decidir.
Para além da discussão jurídica, há um problema prático levantado por especialistas em mobilidade: ilegal ou não, o serviço já era oferecido antes da chegada das grandes empresas de aplicativo. As prefeituras têm poucos recursos para fiscalizar a atividade. Esse fato costuma ser lembrado por quem defende a regulamentação, inclusive para criar regras que protejam os passageiros, já que as corridas ocorrem de uma forma ou de outra.
Na cidade de São Paulo, as caronas de moto por aplicativo estão proibidas há dois anos. Em janeiro deste ano, a 99 passou a oferecer o serviço e a contestar a proibição na capital paulista, decisão em que foi seguida pela Uber dias depois.
A Justiça decidiu que as empresas devem suspender a atividade, aceitando um pedido da prefeitura paulistana. Essa decisão é liminar, e portanto temporária, e o mérito da questão ainda deve ser analisado para determinar se a modalidade pode ou não ser proibida definitivamente.
Há cerca de dois anos, o mesmo Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu pela liberação quando avaliou os serviços de mototáxi. Desembargadores analisavam uma lei municipal de 2018 que proibia o mototáxi na cidade, sob pena de multa de R$ 1.000 para quem for flagrado e confisco da moto em caso de reincidência.
Na ocasião, a instância máxima do Judiciário estadual considerou que a lei invadia a competência do governo federal ao proibir o serviço, e cancelaram os efeitos da lei após julgar que ela era inconstitucional. É um entendimento similar ao que argumentam as empresas. Por outro lado, 99 e Uber alegam que o serviço que oferecem não é o mesmo que mototáxi —a diferença é a mesma dos táxis comuns e os carros de aplicativo, elas afirmam.
Para o advogado Maurício Januzzi, especialista em direito do trânsito, o fato de o serviço não estar regulamentado em algum município significa que, na prática, está vetado. “Como não há regulamentação, a atividade não é permitida”, ele diz.
Em Franco da Rocha e São Bernardo do Campo, em 2023, decisões judiciais do Tribunal de Justiça cancelaram os efeitos de um decreto e uma lei municipal que proibiam a atividade. Nos dois casos, o argumento que prevaleceu é que o município não tinha autoridade para proibir uma modalidade prevista em lei federal.
Decisões semelhantes, na maioria dos casos liminares, já ocorreram ao julgar o serviço em cidades como Rio de Janeiro, Vitória da Conqustia (BA), Marabá (PA) e João Pessoa (PB), entre outras.
Os tribunais citam como referência uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que, em 2020, julgou inconstitucional a proibição ou restrição da atividade de transporte privado individual por motorista cadastrado em aplicativo. A discussão nesse processo havia nascido por causa dos carros de aplicativo. Mas, ao falar da competência dos municípios para regulamentar o transporte individual remunerado, o Plano Nacional de Mobilidade Urbana não diferencia os veículos de duas e quatro rodas.
Desde que as empresas desafiaram a proibição e passaram a oferecer a modalidade, ao menos 307 motocicletas foram apreendidos em fiscalizações de trânsito que flagraram o serviço.
Um relatório feito por um grupo de trabalho, integrado por técnicos da administração municipal e representantes de empresas, concluiu no ano passado que o mototáxi por aplicativo oferece “riscos à saúde pública”, citando o alto número de mortos de motociclistas no trânsito da capital.
A análise leva em conta, por exemplo, que os motociclistas fariam um grande número de viagens ao longo do dia, e que o risco de acidentes aumentaria. O relatório também considera um risco o fato de passageiros utilizarem o condutor como seu apoio na motocicleta, o que altera o ponto de equilíbrio do motociclista a cada viagem, aumentando a probabilidade de acidentes.
“É preciso enfrentar a realidade: Se a prefeitura não controlar o mototáxi, o crime organizado fará isso”, diz o engenheiro Sergio Ejzenberg, especialista em transporte. “Basta lembrar o que aconteceu com os ‘clandestinos’ ou ‘vans’ que exploravam as deficiências do transporte coletivo público nas periferias de São Paulo nos anos 1990. A prefeitura perdeu a guerra contra as vans e acabou regularizando o serviço através de cooperativas, que foram dominadas pelo crime organizado.”
noticia por : UOL