Fome do essencial: a sabedoria transformadora do jejum

Inspirado nos textos e no pensamento do cardeal e poeta português José Tolentino Mendonça, o autor examina como as práticas alimentares e as refeições compartilhadas podem conduzir ao acolhimento, à transformação e à expressão da espiritualidade no cotidiano.

No recorte a seguir, Silvestrini aborda um tema que à primeira vista foge da proposta do livro, porém tem importância fundamental em sua mensagem: o jejum — um caminho, segundo ele, para ampliar a liberdade interior, promover o discernimento e fortalecer a solidariedade com os mais necessitados.

Jejuar significa seguir livremente o caminho da simplicidade, ou seja, “a escolha do pouco, de viver com pouco, procurando encontrar aí, ou retirar daí, o máximo sentido”.

Significa tomar, ocasionalmente ou de um modo durável, o caminho oposto ao da abundância difusa, que pode levar a uma fusão em que tudo se confunde: “O ajustado e o supérfluo; o eleito e o repetido; o original e o banal; a possibilidade de consumo e a promessa de felicidade”.

Tolentino considera qualquer tipo de jejum — de comida, de consumo ou mesmo de crítica — como um ato espiritual que “amplia o campo da nossa liberdade”. Para nosso autor, esse ato espiritual é fecundo.

Segundo ele, o jejum “cria novas disponibilidades, possibilita um melhor exercício do discernimento, melhora inclusive o sentido de humor… e dispõe-nos à solidária partilha com os mais pobres”. O caminho interior aberto pelo jejum deve nos afastar de “práticas predatórias”, inspirando “uma nova qualidade e um novo estilo de relação” que vão além de uma “busca insistente do proveito próprio”.

Se a existência humana está sempre em transformação, isso também diz respeito à nossa relação com as estruturas do mundo, que “patrocina o desfrute devorante das fontes do planeta”, provocando em uma multidão de pessoas o escândalo de uma fome não escolhida. Portanto, o jejum tem implicações éticas e ecológicas.

Ele significa a escolha da autolimitação do desejo de comer. Para ilustrar isso, Tolentino recorre a um exemplo profundamente belo e terrível. É o poema “A Borboleta”, do poeta italiano Tonino Guerra, prisioneiro em um campo de concentração durante a Segunda Guerra Mundial:

Contente, mesmo contente / estive na vida muitas vezes / mas nunca como quando em liberdade / na Alemanha / me pus a olhar para uma borboleta / sem vontade de a comer.

Além de apresentar o jejum como uma atitude que nos ajuda a ampliar nossa liberdade e a aumentar nossa consciência solidária em relação aos pobres e ao mundo, Tolentino nos convida a ir ao coração dessa prática antiga.

Segundo ele, “o que está em causa no jejum é a possibilidade de nos interrogarmos sobre algo mais fundo: aquilo que nos serve de alimento e a voracidade sonâmbula com que vivemos”.

Aprendizagem da conversão

É na frugalidade e simplicidade, na falta mediada pelo jejum, que podemos, ao mesmo tempo, tomar consciência de nossa relação predatória com o mundo, com os outros e mesmo com Deus, e nos abrir à interrogação sobre o que pode satisfazer nosso desejo. Dessa forma, assim como a comensalidade e a cozinha, o jejum também é uma experiência favorável para “uma aprendizagem da conversão”.

De que tipo de conversão Tolentino está falando? Nosso autor nos lembra que a concepção bíblica do jejum não o vê como “uma simples desintoxicação da bulimia em que estamos mergulhados”, mas sim como “um modo, ao mesmo tempo simbólico e real, de exprimir que o verdadeiro alimento da nossa vida é outro, está em outra parte”.

Para falar desse verdadeiro alimento que pode satisfazer nosso desejo, Tolentino recorre às reflexões de um frade dominicano português, o professor de literatura e semiótica José Augusto Mourão: “O que é desejado em nós não são tanto os objetos de que parecia termos necessidade, mas aquilo que subjaz ao fundo de que vivemos, o dom da vida”.

É o que diz também o monge Carlos Maria Antunes, em seu livro “Só o Pobre se Faz Pão”:

O jejum deixa-nos indefesos, confrontados com a nossa nudez, libertando-nos da tirania das máscaras e expondo a pobreza radical que habita cada ser humano. Revela que a nossa fome não é só de pão e que o nosso desejo mais profundo é sempre desejo do outro. Ampliando o nosso espaço interior, transforma-se numa forma singular de hospitalidade, que permite o acolhimento de si mesmo e do outro, na sua mais genuína originalidade e verdade.

Ao longo desta viagem que é a vida, abrir espaço para a falta e a carência significa tomar uma decisão fundamental: “O viajante de costumes simples é aquele que tomou a decisão prévia de transportar consigo o essencial, deixando sempre na sua bagagem um espaço disponível”.

Nossa transformação pessoal, alcançada no encontro inédito e gratuito com os outros, só pode ocorrer nos espaços interiores livremente criados para que a vida continue a trilhar seu caminho de realização sempre surpreendente.

noticia por : Gazeta do Povo

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