“Eu não estou gostando, mas não consigo parar”, diz o infectologista Christopher van Tulleken, do Hospital de Doenças Tropicais em Londres, em um vídeo para a BBC britânica em que documenta o mês durante o qual se submeteu a uma dieta na qual 80% dos alimentos eram ultraprocessados.
Nesse período curto, Van Tulleken ganhou mais de seis quilos, seu cérebro passou a associar comida com as recompensas do sistema límbico e exames acusaram que os hormônios reguladores da saciedade e da fome ficaram totalmente descontrolados. É sob essa dieta com 80% de ultraprocessados que vivem 20% dos adolescentes no Reino Unido —no geral, o consumo de ultraprocessados corresponde a 66% da dieta dos jovens.
O experimento na pegada “Super Size Me” —documentário de 2004 em que o diretor Morgan Spurlock come McDonald’s por um mês— não foi um pedido desesperado de socorro de Van Tulleken. Ele emulou, guardadas as proporções, um dos principais estudos que tenta comprovar a tese da classificação Nova, criada pelo brasileiro Carlos Monteiro e outros pesquisadores do Nupens/USP (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde) e que sugere que o nível de processamento é determinante na qualidade dos alimentos.
Van Tulleken partiu dos achados de Kevin Hall, pesquisador do NIH (National Institute of Health) dos Estados Unidos, em um estudo em que voluntários ficaram um mês confinados num laboratório onde dormiam, comiam e ser exercitavam. A comida, porém, era ultraprocessada para metade do experimento e livre de ultraprocessados para a outra metade.
“Se você se preocupa com a sua alimentação, pegue seu pacote de M&M’s e leia os ingredientes. E se pergunte por que eles estão ali”, diz Van Tulleken em entrevista à Folha, após questão levantada pela reportagem. “Pode haver óleo de palma, corantes, emulsificantes. Isso é realmente delicioso? Tratar um ultraprocessado como um produto de luxo, que é o que a indústria quer, não cola. A comida não é boa o bastante e se torna nojenta rapidamente.”
O médico reforça que não acredita que existam bons ultraprocessados, seja um iogurte, um pão de forma ou um salgadinho. O problema, ele diz, não é o consumo esporádico de, digamos, um pacotinho dos confeitos coloridos, mas o fato de que esse tipo de alimento é hoje a base de dietas —e disputas econômicas e políticas acirradas— ao redor do mundo.
Por que o sr. decidiu se usar de cobaia nesse experimento inspirado nos estudos de Kevin Hall?
Por duas razões: primeiro, queríamos um paciente piloto para um estudo maior, que está acontecendo agora. Queríamos entender se valia a pena fazer um grande estudo, então a melhor coisa era ter um voluntário para ver quais mudanças ocorriam num ambiente não controlado. Em segundo lugar, filmamos o experimento para um documentário da BBC, e documentários precisam de pessoas fazendo coisas interessantes. Não dá para só ficar falando.
Há uma terceira razão que é: eu não pensei que seria algo de mais. Eu acreditava nas evidências do Kevin [Hall], mas não me parecia que veríamos grandes mudanças, principalmente porque eu não estava confinado. Eu estava livre no mundo, ingerindo uma dieta típica de adolescentes. Achei que o impacto em mim seria menor do que o observado no estudo do Kevin. Mas acabei ganhando um monte de peso, que levei dois anos para perder.
Isso é impressionante. Levou dois anos para o sr. perder o peso adquirido em um mês comendo uma dieta 80% composta por ultraprocessados.
Sim, porque eu ganhei mais de 6 kg e perder peso, mesmo 1 kg, é difícil. E eu ganhei mais peso depois que a dieta de ultraprocessados acabou porque eu estava me sentindo um lixo.
O sr. relata, no livro, o impacto não só do ganho de peso, mas da forma como o sr. se sentia durante a dieta de ultraprocessados.
Eu me sentia péssimo. Quando você está nessa dieta, comendo essa comida, você já se sente mal. Mas você não percebe que é a comida. Você imagina que sua esposa e suas filhas tiraram aquele mês para ser especialmente irritantes. É o que acontece quando você está cansado e qualquer pessoa ao redor te irrita e você acha que eles são o problema. Mas eles não são. O problema é cansaço ou estresse. E isso vale para a comida. Nós não associamos o mal-estar à comida.
Quando eu parei a dieta, me senti melhor entre 24 horas e 48 horas depois. Uma semana depois, me senti ainda melhor. Mas as mudanças no meu cérebro foram duradouras. Eu continuei viciado naquela comida, apesar de não gostar mais dela. É importante diferenciar gostar de querer. Eu sentia necessidade daquela comida, mas, quando a comia, a achava nojenta. Foram meses confusos, em que eu pedia um fast food e jogava [a comida] fora sem comer.
No livro o sr. diz que a popularidade dos ultraprocessados não se dá necessariamente porque são alimentos deliciosos ou benéficos, mas por serem baratos e práticos. O sr. acha que existe um aspecto social da comida ultraprocessada que precisa ser levado em consideração nesse debate?
Você está certa, as pessoas não querem comer essas coisas. Veja o que as pessoas muito ricas comem, o que as celebridades comem. Talvez com exceção de Donald Trump comendo seu McDonald’s, são pessoas que comem muito bem. Se uma pessoa não precisasse comer ultraprocessados, ela não comeria. Comida de verdade custa muito dinheiro no Reino Unido. Devemos encarecer os ultraprocessados e mudar os sistemas de subsídios. Ultraprocessados são baratos na hora de comprar e caros na hora de comer. É o custo da saúde pública, da poluição com os plásticos, da emissão de carbono.
Existem casos no Brasil de crianças que estão simultaneamente obesas e desnutridas, em grande parte porque elas se alimentam de ultraprocessados em versões ainda mais baratas.
É crucial entender que obesidade e desnutrição andam de mãos dadas. A mesma comida que causa obesidade leva à desnutrição. Pensamos na desnutrição como uma deficiência de calorias, mas pode haver um excesso. São alimentos que causam desnutrição porque eles existem a partir da destruição de nutrientes na comida, que são rearranjados para garantir durabilidade.
Os Estados Unidos baniram o corante vermelho nº3, que já era banido na União Europeia, onde também se proíbe o dióxido de titânio. Como o sr. enxerga essas tentativas de regulação?
Existem duas abordagens para isso. Há quem diga que é possível tornar os hambúrgueres do McDonald’s 10% mais saudáveis. Tire o sal, o açúcar, adicione fibra, proteína e vitaminas —para algumas pessoas, isso seria um grande ganho. Banir corantes é similar no sentido de ser um passo na direção certa. É positivo por revelar o poder da indústria alimentícia, revela o desejo de colocar componentes maléficos na comida.
Mas mesmo sem corantes, com menos açúcar, menos sal, são alimentos que ainda seriam ultraprocessados. A genialidade da classificação Nova está em sinalizar que o processamento é a questão. Eu acho impossível reformular ultraprocessados. Não existe ultraprocessado saudável. Existem menos maléficos, mas só. O corante vermelho não é o prejudicial desses produtos. O que é prejudicial é que todos os aspectos dele levam ao consumo excessivo e ao lucro. Não há aspecto nutritivo ou de saúde. O corante é só um sinal de que uma comida é feita por uma empresa que não se importa com a saúde.
Já que o sr. mencionou o consumo excessivo como um problema, algo que eu me pergunto sempre, e imagino que muita gente que goste de comer M&M’s ocasionalmente também queira saber, é se existe uma quantidade segura de ultraprocessados que podemos ingerir.
Os efeitos na saúde são variáveis de acordo com a dosagem. É como com o cigarro. Não tem quantidade segura, mas um cigarro por semana não vai te fazer um grande mal se você já está exposta à poluição de São Paulo. Um teco de cocaína por mês não vai fazer mal, um pouquinho de heroína. O problema com a heroína e os M&M’s é que é difícil comer um só. Ninguém passa a semana comendo ensopado caseiro, vegetais frescos e saladas de frutas e chega na sexta-feira e come M&M’s. As pessoas tomam sorvete na quinta-feira e [comem] uma barra de chocolate no café da manhã e biscoitos à tarde e tomam mais sorvete no sábado e comem um cachorro-quente no domingo. O problema é o padrão de dieta.
Pensando no consumo infantil de ultraprocessados, e até na experiência com sua filha pequena comendo uma tigela de cereais com o sr. durante a parte ultraprocessada do experimento, como o sr. vê a questão do marketing direcionado aos pequenos, com animais fofos e cores chamativas?
As empresas predam os mais vulneráveis, os menos escolarizados, os mais pobres. As crianças são as mais vulneráveis de todos, e esse processo começa no marketing, que começa na persuasão para que os pais troquem o leite materno por fórmula. Comida de verdade é algo desafiador. Tem que mastigar, muitas vezes são fibrosas, amargas. Crianças comem mais que os adultos quando se pensa no consumo por peso e eles não sabem ler as caixas do que comem. Eles não têm autocontrole, são impulsivos. Os cartoons precisam sair das embalagens. Precisamos proteger as crianças do marketing.
Houve na Europa um debate acirrado sobre o Nutri Score, o sistema de etiquetas que classifica alimentos como saudáveis ou prejudiciais. A primeira-ministra italiana Giorgia Meloni pegou a briga pra si no contexto de um debate sobre a valorização de queijos, presuntos e produtos artesanais nacionais, que acabaram mal avaliados nesse sistema. É um projeto eficaz?
Não há forma perfeita de descrever comida saudável ou não saudável. Países sul-americanos têm bons sistemas, a partir da OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde). Mas será que um açougueiro de uma cidade do interior precisa colocar um aviso de excesso de sal e gordura no prosciutto dele? Eu não acho que essas pessoas sejam parte do problema de saúde pública em curso. Prosciutto não é saudável, mas pessoas não compram quantidades gigantes disso. É parte de um modo de viver tradicional.
Temos que construir leis que não penalizem o pequeno produtor que faz comida tradicional. O jeito fácil é deixar claro que estamos falando de alimentos feitos por grandes empresas, embalados, que não demandam preparo posterior. O problema não é uma empanada tradicional vendida na rua ou o queijo da delicatessen. Nada disso é vendido em embalagens com personagens infantis. Se o alimento vai ter um aviso na embalagem, deveria ser proibido ter também um personagem.
Existe um debate, capitaneado por pesquisadores em Harvard, de que alguns ultraprocessados são piores do que outros. As carnes seriam os piores, e um iogurte seria melhor do que um refrigerante. Devemos levar isso em consideração ou todos os ultraprocessados devem ser tratados da mesma forma?
Podemos discutir o dia todo se pão é melhor que chocolate, se uma dieta só de pão seria melhor que uma dieta só de chocolate. Mas ninguém faz isso. O pão está na base da dieta e é cheio de açúcar, sal e gordura. Sempre mencionam o iogurte, que é cheio de açúcar. Eles deveriam ganhar um aviso de que foram adoçados artificialmente. Ninguém está dizendo que tudo é exatamente igual, que Cheetos é igual a pão. Mas é difícil criar uma análise de dados de subgrupos quando olhamos índices de sal, açúcar, gordura e teor calórico. Para comunicar isso às pessoas você cria um sistema que diz que Cheetos é uma merda e que o pão também não é lá essas coisas, mas melhor que o Cheetos.
RAIO-X | CHRIS VAN TULLEKEN, 48
1978, Londres. É médico formado pela Universidade de Oxford e autor de “Gente Ultraprocessada”. É apresentador de TV na Inglaterra e esteve a frente de programas como “Medicine Men Go Wild” e “Operation Ouch!”.
noticia por : UOL