Não teve etarismo no Oscar com Mikey Madison e Demi Moore

Envolvidos com as indicações e a premiação do Oscar para “Ainda Estou Aqui” e movidos pela premiação de Fernanda Torres com o Globo de Ouro, que depois perdeu para Mikey Madison o Oscar de atriz, estamos todos discutindo o trabalho de atrizes e atores de maneira muito acalorada.

Todos temos um gosto pessoal para interpretações, mas, ao contrário do que se costuma dizer, gosto pode e é bom ser discutido, pois ele é forjado ao longo da vida não só por matéria subjetiva, mas por algo menos abstrato do que parece. É construído pelo repertório que vamos adquirindo com o tempo: o que lemos, o que vimos, o que ecoa na nossa cultura ou história pessoal, o que conhecemos e vivenciamos das artes, da política, da economia e do contato com o mundo. E claro que ele é salpicado de paixões pessoais também. Pelo menos o meu.

Torres não ganhou o Oscar de melhor atriz e, para mim, deveria ser dela. Um trabalho de interpretação construído com inteligência, profundidade e um conjunto de ambiguidades e sutilezas só alcançadas em momentos raros por um ator.

Com sua interpretação, ela pavimenta a história de Eunice Paiva com tanta beleza e originalidade que sustenta o monumento de Fernanda Montenegro, com Eunice já idosa e com Alzheimer, dizendo “ainda estou aqui”. Esse eco ressoa em nós desde que o filme nos tomou. O fato de Torres ser brasileira é a cereja do bolo. Ela é uma artista que o Brasil entrega para o mundo, assim como Walter Salles.

Durante esses dias em que estendi a bandeira do Brasil com o rosto da Fernandinha, pensava que o mais difícil para mim seria aceitar uma derrota para Demi Moore. E, para meu alívio, foi Mikey Madison quem surrupiou nosso Oscar de melhor atriz.

Contra a opinião geral, acho a interpretação de Moore clichê; a cada olhar, cada gesto, faz o que o senso comum entende como medo, dor, tristeza. Não é capaz de tridimensionalizar a personagem. Não imprime ao seu papel o que Constantin Stanislavski chama de “contravontade”, aquela camada de dúvida ou de um pensamento oposto ao que se está dizendo para enfatizar e dar mais verdade ao que se diz. Interpretação plana, previsível. Como se ela, como atriz que cedeu à pressão da indústria por não se deixar envelhecer, não refletisse sobre o próprio assunto do filme que fez e que lhe diz respeito.

Já Mikey Madison faz uma prostituta jovem que tem em seu gestual as estereotipias de sedução que a personagem cria para sobreviver como trabalhadora do sexo, mas a isso acrescenta o medo, a doçura, o frescor, a dor, a força e a inocência que só a juventude nos dá. Constrói um personagem tridimensional, comovente e totalmente desamparado.

O trabalho do ator é uma coisa técnica, às vezes quase braçal. Diderot escreveu em “Paradoxo do Comediante” que as lágrimas de um ator devem descer do seu cérebro. Stanislavski escreveu, em relação ao texto, que ele deve ser trabalhado como profundidade em uma pintura. As palavras não têm todas o mesmo tom nem a mesma importância, assim como os traços, as manchas de tinta que formam uma paisagem. Quando não tem isso é mediano.

Não acho que houve um cunho etarista na premiação se comparo as atuações de Moore e Madison, que fez bonito. Mas o fato é que nenhuma indicada entregou uma atuação tão potente quanto Torres, que construiu uma gramática poderosa até no silêncio de sua personagem. Uma atriz brilhante aos 59 anos e que, ainda aos 20, já havia vencido o prêmio de melhor atriz em Cannes.

Atriz e diretora de teatro

noticia por : UOL

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